Nestes tempos de hoje, que para a nossa neurose colectiva bem melhor seria que fossem já de ontem, raio de presente que custa a engolir, quer o façamos devagar quer o tomemos de um só trago, talvez, como escreveu uma vez João Brites, só a arte e a poesia possam responder com dignidade ao turbilhão de perguntas que nos assaltam sobre a morte, e porque é de morte que falamos.
Principalmente porque, como já deve ter percebido Eduardo Lourenço com os seus recados de Vence, é hercúlea a tarefa de pensar uma guerra que é em si mesma a própria morte do pensamento. É que falta objectividade, rigor, transparência e pensamento onde sobeja propaganda. Como escreveu Séneca, ou como disse a Cornucópia no seu magnífico e actual - eu diia, ferido pela sua tremenda actualidade – Tiestes, “
muito àvido é da vida quem não aceita morrer quando consigo vai morrer o próprio mundo”.
A dramatização do ataque anunciado impede-nos de perceber o que é verdadeiramente decisivo. O crucial, o verdadeiramente importante não é saber se os Estados Unidos vão ou não atacar o Iraque sem o envolvimento da comunidade internacional. Isso só será importante se os seus aliados, se essa mesma comunidade conseguir chamar a administração Bush ao respeito, mesmo que contrafeito, do direito internacional.
O crucial, o verdadeiramente decisivo, até para a nossa sobrevivência enquanto país, enquanto Europa, é sabermos que papel vamos ter neste mundo com ou sem este ataque anunciado. O nosso governo já anunciou a sua posição, anúncio atabalhoado, tão ilegítimo como ilegítima é a chantagem que este ataque anunciado corporiza. Pior que uma guerra generalizada só a circunstância de nos vermos envolvidos nela pelas piores razões, como participantes activos num crime para com a humanidade. Do avanço inexorável da serpente sem maçã livre a sustentar-lhe a cavalgada.
É natural o temor da eclosão da 3ª Guerra Mundial, e é sem dúvida um bom motivo para despertarmos desta sonolência entorpecedora de espectadores encaixotados no nosso suicídio de mundo, mas talvez tenha chegado o momento de vermos para além dele. O desastre que deste ataque virá será devastador para a paz, principalmente porque estilhaçará esta realidade frágil a que vimos designando por direito internacional, mas talvez esta entidade quase mítica da 3ª Guerra Mundial já tenha chegado há algum tempo. Através de uma guerra que já se mundializou, que já se interiorizou em cada um de nós. Haverá muita gente que pensa que não, que ela só acontecerá quando, um dia, um míssil lhe cair na sua sopa de nabiças, mas talvez não seja tanto assim.
Na Palestina, na África vermelha de sangue seu, na Colômbia, na Tchetchénia, em Caxemira, e em todos os lugares onde a Besta se sentou á direita do Pai, não é assim. Muito ávido da vida será também aquele que só reconhece a morte do mundo quando esta lhe pode trazer a morte do seu próprio mundo.
A única força que poderá ainda impedir a devastação que o ataque americano, ou o seu anúncio, veio trazer ao nosso mundo, será a de aceitarmos que morremos com a morte do Outro. Que nos embrutecemos com a sua ignorância. Que perdemos a nossa própria humanidade quando o Outro é despojado da sua dignidade humana. A única coisa que pode impedi-lo é uma força maior do que aquela que, neste momento, o faz pender, como um cutelo, sobre o nosso mundo. A força dos actos cívicos praticados quer pelos homens livres, que serão sempre poucos, quer por aquela imensa mole que encontra na ânsia de ser livre, a expressão possível da sua liberdade.
E esse é um combate que talvez nunca devêssemos ter negligenciado, mas que agora, sabemo-lo nesta noite terrível do pensamento desaparecente, nos convoca para sempre. Mesmo aqui ao lado, quatro milhões de pessoas saíram às ruas de Madrid porque o compreenderam. Sem dúvida que sempre é muito tempo e nós temos tão pouco, mas a partir de agora, sempre é sempre. Estamos condenados a entendermos o Outro ou estaremos condenados por não O compreender.
Sabemo-lo, é difícil perceber o dilema do nosso mundo com o advento de uma propaganda que desonra o espírito das democracias de que tanto nos ufanamos. Manchando-as com a sua própria incapacidade de compreender o tresloucamento que é levar a ignorância sobre o outro até à sua supressão. É a Besta que convocam, ou, repetindo Séneca, “ Muito àvido é da vida quem não aceita morrer quando consigo vai morrer o próprio mundo”.
Melhor seria que se, para poderem projectar sobre o futuro a vossa sobrevivência, têm mesmo de matar o Outro, melhor seria que o honrassem com a verdade sobre a sua própria morte. Explicando-lhe que o problema é aquele lugar onde a terra os prodigalizou com um maldito sangue negro que se tornou para a nossa civilização tão vital como o outro que agora, fazendo contas à nossa sobrevivência, lhes pretendemos roubar. Um sangue também pastoso mas avermelhado e em que nenhuma terra, nem a mais fértil, pode ser pródiga.
Honrem-no com a verdade da sua morte, e será mais fácil perceberem a sem escolha e o carácter irredutível da nossa recusa em sermos cúmplices. E até a nossa incomodidade. Todos nós preferíamos que as coisas fossem de outra maneira. Que nunca tivéssemos percebido como é que o progresso da nossa civilização está tão promiscuamente ligado à indignidade do Outro. Mas percebemos. A mentira, mesmo fenecendo de longevidade e velhice, tem perna curta e há um dia, que nem perna tem.
Compreenderão também porque é que parece que estamos a fazer o jogo de quem não é democrata nem nosso aliado. A Besta não é uma questão de figuração, sim de desfiguração. O problema é que não é o nome - seja ele de Saddam, Bush ou Sharon - que figura a Besta. O problema é que é esta que nos desfigura. Não está em causa aquilo que cada uma destas aberrações políticas é ou não é, a que nem as nossas democracias estão imunes, mas aquilo que veementemente nós próprios não queremos ser, não podemos ser.
Não queremos nem podemos ser cúmplices. Porque não somos inocentes. A retórica da inocência, conjuntamente com a da exaltação da nossa condição democrática, é uma peça decisiva do xadrez da mentira que cobre o Médio Oriente. Sabemos, com uma dor que sempre adiámos, que os nossos gestos mais triviais e quotidianos, aqueles que quase ousamos pensar que são imprescindíveis, estão manchados e etiquetados por uma usura que sempre desvalorizámos.
E é esse, entre a arrogância da inocência e o reconhecimento, doloroso, da nossa responsabilidade, o exacto dilema que nos separa.
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(1) “Nascuts Culpables” de Peter Shichrovski, era o nome de um espectáculo polémico que o valenciano Moma Teatre construiu a partir de histórias de vida de filhos de criminosos nazis que já nasceram com o estigma da culpa do terrível genocídio sobre os judeus e que tem, entre muitos, o mérito de nos consciencializar de que a inocência não é um lugar deste mundo, e de que, mesmo que o fosse, nunca seria tão luminoso e recomendável como o da responsabilidade. Nascemos Culpados foi publicado pela primeira vez na Zona Non.